terça-feira, 2 de setembro de 2014

MARTIAL RAYSSE - RETROSPECTIVA 1960-2014 - WWW.CENTRE POMPIDOU - PARIS (Camila Moreira)



Martial Raysse, Peinture à haute tension, 1965
huile et peinture fluorescente, construction-collage, 162,5 x 97,5 cm


MARTIAL RAYSSE

RETROSPECTIVA 1960-2014
14 MAIO À 22 DE SETEMBRO DE 2014

WWW.CENTRE POMPIDOU
 PARIS

Mais de 200 obras integram a retrospectiva do artista / pintor francês Martial Raysse no Centre George Pompidou, em Paris. Com imagens que trazem referência à códigos, símbolos, com caráter provocador sobre seu tempo, Martial Raysse pinta mulheres estereotipadas, utiliza formas novas e populares em dialogo com a sociedade de consumo contemporânea à sua produção. “L’art actuel, c’est une fusée dans l’espace. Les “Prisunic” sont les musées d’art moderne”, narra o artista.
Martial Raysse nasceu em 12 de fevereiro de 1936 à Golfe-Juan-Vallauris, aos arredores de Nice, França. De família de artesãos ceramistas, ele começa seus estudos em Letras na faculdade de Nice em 1955 e se orienta em direção à pintura e escultura, que ele praticava desde a infância. Ainda jovem, mostra suas primeiras obras, pinturas e assemblages em exposições coletivas de diversos países. Sua produção conhece desde cedo um rápido sucesso na Europa, depois à Nova York e à Los Angeles onde ele residira até 1968 e se ligara à pop art. O artista tem uma carreira marcada por exposições, contatos com artistas e visitas à museus em idas e vindas aos Estados Unidos.
Dono de uma trajetória irreverente, de obras picturais com cores fortes, opacas e mestiças, Martial Raysse reúne nessa grande retrospectiva no Pompidou a narrativa de um artista que buscou em suas obras a mutação.

“Eu nunca fiz pintura, eu sempre trabalhei sobre as imagens, à as transformar e tirar uma nova linguagem. Eu sou um pintor que utiliza as técnicas modernas, para exprimir um mundo moderno.” Martial Raysse.

Martial Raysse, Raysse beach, 1962.

















Martial Raysse
Expositions
14 mai 2014 - 22 septembre 2014
de 11h00 à 21h00
Galerie 1 - Centre Pompidou, Paris
13€, TR 10€
http://www.centrepompidou.fr/




Responsável pela criação dessa postagem:
Camila Moreira
artista pesquisadora integrante do NUPPE





segunda-feira, 25 de agosto de 2014

4. Os ex-votos na arte contemporânea



São muitos os artistas contemporâneos que têm os ex-votos como referência criativa. Estes objetos devocionais inspiram diferentes modos de apropriação por parte dos artistas, não apenas em relação ao aspeto formal, mas também ao ideário que lhes subjaz e às motivações pessoais e coletivas que estão na sua origem.

Ex-voto italiano de 1924. (P.G.R. é a abreviatura de Per grazie ricevute, que significa "Pela graça recebida")




Os ex-votos são ofertas votivas a um santo ou divindade, que tanto podem acompanhar um pedido de feliz desenlace, como constituir já o pagamento da promessa relacionada com tal pedido. A designação ex-voto vem precisamente da expressão latina ex voto suscepto, que significa “pela promessa realizada” ou “em resultado da promessa realizada”. Como na maioria dos casos o que motiva o pedido é uma situação de doença, os ex-votos representam habitualmente as partes do corpo afetadas. Podem também dizer respeito ao bom sucesso de viagens longas, pelo que é vulgar encontrar ex-votos com temas marinhos. Outras motivações são a proteção das colheitas, a proteção da gravidez, a cura de alguma dependência, problemas sexuais, o sucesso de determinado projeto ou o encontro de alguém ou alguma coisa que tenha desaparecido. Sair ileso de algum acidente, catástrofe ou acontecimento violento constitui também motivo para os ex-votos. 


Ex-votos na Saint Roch Chapel em New Orleans, Louisiana. (Com próteses)

Exemplos de ex-votos anatómicos


 Muitos deste objetos são esculturas antropomórficas parciais em cera, argila ou gesso, outros são pinturas e desenhos naïfs, de pendor narrativo, com uma legenda explicando o pedido e/ou a sua concessão, à qual é atribuída uma proveniência miraculosa. Em certas regiões, são também comuns os ex-votos constituídos por gravuras em folha-de-flandres, emolduradas sobre fundo vermelho, ou mesmo jóias em ouro, prata e outros objetos do quotidiano como peças de roupa, instrumentos de trabalho, aparelhos ortopédicos, partes de bicicletas, peças de automóveis, mas também mechas de cabelo ou fotos. Embora seja uma prática bastante associada ao Sul da Europa, também é comum encontrar a tradição dos ex-votos no Brasil, México, Estados Unidos da América, Alemanha ou Suécia, entre outros.


Vários ex-votos em lata na Cappella della Visitazione da Igreja de Gesu Nuovo em Nápoles




A tradição votiva era já prática comum entre civilizações tão antigas e distintas como a egípcia, a helénica ou a maia, porém, na sua especificidade, os ex-votos têm origem na Itália renascentista. A classe burgesa em ascensão comissionava este tipo de pinturas, cuja qualidade artística em nada ficava atrás dos retratos então pintados destes mecenas. A rápida difusão geográfica e a democratização da prática fez com que os ex-votos passassem de objeto de arte a artesanato religioso. Sem o poder económico dos grandes mecenas, o povo fazia os seus próprios ex-votos ou encomendava a artesãos sem a qualidade técnica dos bons pintores renascentistas.



 
Ex-voto com temática marinha do final do séc. XV, exposto na Igreja de S. Pedro em Zumaia (Espanha).


Ex-voto com temática marinha na Igreja de Santa Maria del Soccorso, Forio (Ilha de Ischia – Itália), 1864
Ex-voto em forma de barco na Igreja de Santa Maria del Soccorso, Forio (Ilha de Ischia – Itália)



A extraordinária riqueza do vocabulário figurativo, o ritmo serial com que são apresentados e o tipo de ocorrência psicoafetiva que os motiva fazem dos ex-votos um objeto de grande atratividade visual, para além do interesse histórico e etnográfico. Com efeito, não constituem apenas um modo de comunicação entre a pessoa que faz o pedido e a divindade à qual é destinado, mas têm também uma dimensão pública, funcionando como louvor comunitariamente manifesto e como exemplo para os demais fiéis que frequentam o santuário onde estão expostos. Alguns ex-votos eram também deixados em cemitérios, intercessões de vias, ou cruzeiros. O fascínio que despertam, levou a que vários artistas os colecionassem pelo seu valor histórico, cultural e pelo potencial criativo: a coleção de Frida Kahlo e Diego Rivera é famosa. Ambos foram fortemente influenciados na sua prática artística pelos ex-votos. 

Frida Kahlo, Sin esperanza, óleo sobre tela, 28 x 36 cm, 1945.

Diego Rivera, En el Arsenal, óleo sobre tela, 433 x 400 cm, 1927




A dimensão popular, no seu cariz narrativo e na sua ingenuidade representativa, foi recuperada por estes dois pintores mexicanos nas suas próprias pinturas.


Outras formas de apropriação do imaginário ligado aos ex-votos podem ser exemplificadas em composições do artista contemporâneo Keith Anden Achepohl (Chicago, Illinois 1934), também ele um grande colecionador destes objetos, que começou a recolher no sul de Itália há mais de 40 anos atrás. No caso de Achepohl, os ex-votos que mais o influenciam são os gravados em folha-de-flandres. O artista diz-se fascinado pelo significado que estes objetos representaram na vida das pessoas e refere o respeito face a tais peças que permitiram transmitir emoções pessoais tão poderosas que levam a suspender a razão em prol da fé cega.[1] Em relação ao conjunto de pinturas e desenhos que Achepohl fez tendo como referência o universo dos ex-votos, ele diz que sentiu tratar-se mais de uma forma de contar histórias, do que de criar arte.[2] A dimensão narrativa e o cariz popular dos ex-votos revela-se fundamental para Achepohl.

Keith Achepohl, Untitled 18, mixed media on handmade Venetian paper, 13.5 x 17 in., 2011-2013




Keith Achepohl, Untitled 20, mixed media on handmade Venetian paper, 13.5 x 17 in., 2011-2013




No campo da imagem fotográfica, há vários exemplos contemporâneos com pertinência nesta abordagem aos ex-votos. Veja-se o caso de Tom Chambers, cuja obra fotográfica comtempla uma interessante série dedicada ao tema. Para as suas fotos, Chambers foi inspirado pelos ex-votos mexicanos, deles recuperando a ambiência misteriosa e a ilustração narrativa de eventos dramáticos ou de claro risco. Não há qualquer intenção documental por trás da sua obra, que por vezes parece mesclar nas suas composições elementos surrealistas (descontextualização, nonsense) com elementos barrocos (iluminação, teatralidade), tendo sempre por fundo a atmosfera narrativa e a pungência enigmática dos ex-votos.

Tom Chambers, Aground, foto, serie Ex-votos, 2003.

Tom Chambers, Plymouth Rock, foto, serie Ex-votos, 2003.

Tom Chambers, Pueblo fire, foto, serie Ex-votos, 2003.

Tom Chambers, They comfort, foto, serie Ex-votos, 2003.





Em termos escultóricos são também muitas as apropriações que a arte contemporânea tem feito destes objetos. O artista suíço Urs Lüthi tem vindo a desenvolver desde 2005 uma série de esculturas precisamente intituladas Ex-votos, que remetem para a vertente anatómica deste objetos votivos e para o intuito de celebração vital que os motiva. A obra de Lüthi vive do “dar forma à emoção” e de uma certa ironia que transporta para a arte, fazendo da sua prática como que a vertente mais valiosa da vida quotidiana, ao mesmo tempo que relativiza a importância da dimensão existencial desse quotidiano. A vida está mais do lado da arte do que do lado da própria existência quotidiana. O interesse de Lüthi pelos ex-votos parece igualmente radicar nessa vertente mais apaziguante e satisfatória de entrega pessoal a uma dimensão oculta e só acessível pelo elemento intercessor, religioso, na verdadeira aceção do termo re-ligare. Os seus objetos escultóricos, tal como os objetos votivos, testemunham essa entrega a uma dimensão mais viva e poderosa do que a própria existência quotidiana a que se referem. A simplicidade das formas e uma certa ambiência hospitalar fazem com que se lhes associe uma certa pureza que anda de mãos dadas com um certo desconforto e sensação de incerteza. Domina a ambiguidade entre a dimensão vital e o risco da iminência da morte.


Urs Lüthi, Ex voto I-V – Instalação na Galerie Lelong, Paris, 2008.


Urs Lüthi, Ex voto, vitrine, vidro, 202x91x91cm, 2012.


Urs Lüthi, Ex voto, detalhe da instalação no ateliê do artista, 2008.





Christie Brown é uma escultora cujo trabalho encontra igual referência nos ex-votos, quanto à sua dimensão antropomórfica e quanto à serialidade resultante dos conjuntos expostos nas paredes dos santuários. A inspiração formal e estrutural tem por fundo os objetos votivos de Itália e do Brasil. Por trás da exploração formal, há todo um desenvolvimento concetual com base numa perspetiva arqueológica psicologista, que culmina na temática da cura e da crença. Os objetos escultóricos que compõem as instalações de Brown parecem, com efeito, saídos de escavações arqueológicas e eles próprios, na repetição das formas, invocam uma sobreposição de memórias, aspirações, medos, etc. Essa invocação das múltiplas camadas que constituem a nossa dimensão psicológica faz com que, ao sermos confrontados com elas, possamos dar também início a um processo de cura ou minimização da dor. Trata-se de um apelo à instrospeção e ao potencial da crença, não propriamente relacionada com o esoterismo, mas com a nossa capacidade de estabelecer conexões significantes entre diversas partes que por vezes se autonomizam em demasiado, causando rupturas ou zonas muradas dentro da nossa vivência emotiva. A questão religiosa é então resumida à dimensão psicológica pessoal, na qual a crença é um dispositivo de abertura à coexistência harmoniosa e simbiótica de esferas emocionais que estavam antes recalcadas ou isoladas por outras camadas mais preponderantes, ou mais recentes.





Christie Brown, Resource, instalação (barro), 1998-9.


Christie Brown, Ex-Votos, barro, 2003-200.






Também para muitas das suas obras, o processo criativo de Aninha Duarte tem por base uma aturada e minuciosa pesquisa em torno dos ex-votos, dos quais recuperou a linguagem simbólica. Ao estudar a iconografia votiva, não apenas na dimensão mais manifesta da sua imagética, mas também na dimensão cultural e psicológica que lhe subjaz, Aninha Duarte tem contemplado uma dimensão etnográfica no seu processo criativo que acompanha de modo impartível todo o desenvolvimento plástico. A atenção às formas, aos materiais e à dimensão serial patenteia o paralelismo entre o substrato emocional que igualmente recupera para as suas obras a partir dos ex-votos, e um forte cariz documental. A temática da memória pessoal, histórica e cultural, está presente nestas suas apropriações do objecto religioso votivo, ele próprio atinente à estrutura mnésica veiculada pela dimensão narrativa e ao apelo a que não seja obliterada a agraciação concedida, através da dimensão consagratória pública na qual radica tal prática.

Aninha Duarte, Ex-votos e Poiésis, instalação, 300 x 160 cm, 2001.

 
Aninha Duarte, Analgesias votivas, instalação, 500 x 330 x 30 cm, 2003.




Aninha Duarte, Combinações (detalhe), Série de10 caixas, 20 x 13 x 8 cm, 2006.



Aninha Duarte, Descansem em Paz (detalhe), pintura sobre tecido, pigmento/ vinil, 460cmx 140cm, 2013.





Embora haja muitos mais exemplos que poderiam ser aqui analisados, findamos com uma instalação em prata de Nynke Deinema. Esta artista holandesa pretende chamar a atenção para uma certa desumanização nos cuidados médicos. A crescente tecnologização deste setor tem vindo a ser acompanhada por um refrear do apoio mais personalizado e baseado na dimensão afetiva. A ajuda prestada pelas mãos dos médicos e enfermeiros que estavam à cabeceira dos doentes parece estar a ser substituída pela fria monitorização das máquinas. A necessidade do regresso a uma relação mais gratificante e eficaz do ponto de vista psicológico, é portanto o fator de recuperação do universo votivo nesta instalação de Nynke Deinema. O próprio título em latim Do ut des significa “Dou de modo a que me dês” e refere-se à prática dos ex-votos na gratuitidade da dádiva, como troca de valor afetivo, sendo que dela também é criativamente citado o aspecto formal. A artista serve-se de moldes em gesso de orgãos e partes anatómicas, que depois passa para formato digital e imprime a 3D em tamanhos bastante maiores que os dos moldes originais. O objeto final é trabalhado em prata, material que na antiguidade tinha grande aplicação medicinal. Uma orelha em grande formato, uma mão, diversos órgãos internos e outros detalhes anatómicos compõem esta instalação.

Nynke Deinema, Do ut des, instalação, cerâmica e prata, 50 x 100 x 15 cm, 2013.



 
Outro detalhe da instalação.





















A arte contemporânea tem-se reapropriado dos ex-votos através de técnicas e expressões muito díspares, culminando em obras que podem, ou não, ir de encontro ao substrato religioso que está na base da prática votiva. Os processos criativos que recuperam para si características do universo religioso, fazendo o translado de elementos formais ou conceptuais desse contexto religioso para o contexto artístico, não estão presos a amarras de natureza ética relativas ao contexto religioso – o que não significa que seja aceitável que possam fazer tábua rasa de pressupostos éticos mais gerais – e beneficiam de uma liberdade bastante ampla, que inclusivamente poderá contemplar a crítica desse mesmo universo religioso que citam. Não há uma necessária coincidência entre os princípios que enformam a concetualidade criativa e as premissas religiosas sobre as quais opera tal processo criativo. O mesmo não deverá ocorrer nos casos em que a obra de arte é especificamente feita para um espaço ou contexto religioso (como ocorre nos anteriores exemplos apresentado neste blog no corrente mês) e cuja referencialidade deve respeitar os princípios que subjazem ao universo teologal em questão, independentemente do artista ser ou não crente.


Nos diversos exemplos que analisámos em relação às práticas artísticas que de algum modo se deixam inspirar pelos ex-votos, é possível constatar que, apesar de beneficiarem de ampla liberdade criativa, a intenção referencial dos artistas parece sobretudo centrar-se numa espécie de celebração da vida, dos elementos que concorrem para a sua agraciação e preservação, bem como na importância da sua dimensão afetiva. Tais focos estão de acordo com os valores religiosos subjacentes à prática votiva. 


A obra de muitos outros artistas poderia aqui ter sido tomada como exemplo da apropriação criativa dos ex-votos, mas o constrangimento dimensional do texto levou-me a esta seleção que considero ser paradigmática dos diversos modos que pode assumir tal apropriação. Resta-me deixar como tópica aberta à reflexão o facto de haver uma espécie de mise-en-abîme característica destas práticas artísticas que se deixam nutrir pela visualidade e conceptualidade peculiar de um objecto religioso, ele mesmo fruto de um processo que, não obstante ser considerado do domínio da arte popular, vive também do jogo criativo entre uma linguagem visual muito própria e uma profundidade simbólica que reflete e que apela a estados emotivos específicos. Não deixa, portanto, de haver uma certa circularidade nestes processos de criação artística coontemporânea que citam os ex-votos, eles próprios fruto de um processo criativo de natureza distinta. 




Ana Rita Ferreira

NUPPE/CFUL



[1] “I’ve always been fascinated by what these have meant in people’s lives. Throughout history who has not made a wish or communicated a private aching need or tender longing to a higher power? I have a profound respect for any object that allows a person to convey a personal emotion so powerful as to give over or suspend reason for blind faith.” Keith Achepohl na nota de imprensa para a exposição If It Please You Lord, no Hallie Ford Museum of Art (Oregon). http://willamette.edu/arts/hfma/about/news/media/2013-2014/keith_achepohl.html
[2] Achepohl em entrevista conduzida por April Baer para o programa de rádio State of Wonder da Oregon Public Broadcasting, em 5 de Abril de 2014. Disponível em podcast pelo seguinte link: http://www.opb.org/radio/programs/state-of-wonder/article/icons-of-gratitude-keith-achepohls-ex-votos/?t=37617



Vários ex-votos